29 janeiro 2010

Uma lágrima para um velho rabugento

Eu gosto dos rabugentos. Tenho até textos inéditos falando disso. Realmente me sinto bem quando me deparo com um. Há algo mais engraçado que o rabugento que, além de reclamar da própria miséria, ainda tenta humilhar alguém ao mesmo tempo? Lembro-me de ter rido horrores com um velhinho perneta que morava no mesmo prédio que eu e que tirava os dias para, do terraço, sentado numa cadeira de rodas, olhar o movimento na rua e ler o jornal. Não há como não se compadecer de um velhinho perneta; e foi nessas condições que um sujeito, um miserável com cabelinho de Beckham, com um sorrisão idiota, começou a cantar em seu ouvido musiquinhas sobre a beleza da vida e similares. O rabugento, com estilo, desferiu-lhe um tapa com as costas da mão e, como se o desprezo pelo sujeitinho fosse tão grande que ele fosse indigno mesmo daquelas três palavras, gritou com a voz grossa e lenta: “deixa eu fumar!” Foi quando eu me compadeci do perneta.

Mas eu falo isso tudo apenas para ilustrar que meus rabugentos favoritos são os velhos, ficcionais ou não. Todos têm seus momentos de rabugice, mas o privilégio de realmente ser rabugento é algo que se conquista com esforço, com erro e repetição, com uma vida inteira de cansaço, e é valoroso admirar um mestre no ápice de sua arte. Os exemplos famosos são fartos: Woody Allen, Harvey Pekar, Crumb, o velhinho de Up, o Sr. Kowalski, de Gran Torino, e o próprio Clint tem algo assim, João Gilberto, Salomão, Alan Moore e, um caso particular, Jerome David Salinger.

O personagem principal de Salinger, Holden Caulfield, protagonista d’O Apanhador no Campo de Centeio (The Catcher in the Rye), é um jovem verdadeiramente rabugento. Reclama do assobio de um, se irrita com um colega perguntador, e quando algo lhe agrada, ele sempre o afirma com um tom de reclamação. Salinger não fica atrás. Publicou sua obra prima em 1951, e pouca coisa depois, até finalmente parar de publicar em 1965, sem maiores explicações.

Em relação à obra, Salinger nunca permitiu que adaptassem suas obras para o cinema, não aceitava desenhos na capa de seus livros, muito menos qualquer texto na orelha, as traduções dos títulos em edições estrangeiras são sempre, obrigatoriamente, ao pé da letra, além de mais um infinito de condições. Em sua vida particular, se retraiu numa casa em New Jersey, e não permitia que tirassem fotos, não recebia visitas, nem dava entrevistas, como todo bom rabugento.

Mas parece que não sou o único a gostar dos rabugentos. O Apanhador é um dos ícones do século XX; alguns, ainda que exageradamente, alegam até que o rock e a rebeldia adolescente começaram ali. Enquanto isso, Salinger, para a sua desgraça, foi seguido por uma legião de fãs, de stalkers aos imitadores de sua literatura, em grande parte adolescentes aspirantes a escritor, por causa de Caufield. É com aquele pesar indiferente que sempre reservamos aos famosos que nos agradam, que eu soube ontem que o velho desagradável tinha morrido, aos 91 anos.

Dizem que escrevia continuamente, apesar de não publicar. Com sua morte, seus textos inéditos devem vir à tona. Isso torna o caso de Salinger raro na história, pois apesar da tristeza com sua morte, os seus verdadeiros fãs, órfãos de sua obra após seu auto-decreto de silêncio, os fãs que leram tudo publicado por ele, ao tempo que choram, se contorcem de alegria; Salinger morreu e, de acordo com os boatos e para a felicidade geral dos herdeiros, livros inéditos virão. O velho rabugento não se importa mais.

Paulo Raviere

4 comentários:

  1. É mesmo. E de Dr. House. Deve ter mais algum.

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  2. Esqueceu tbm de PCSiqueira do canal MASPOXAVIDA; João Cabral e Bento Ribeiro ^^

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  3. Caralho, véi, agora foi a vez de Pekar!

    Um lágrima para mais um velho rabugento.

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